Produção Textual

a língua não é uma lei, a língua é uma dança

 

 

 

Sonho de Crepúsculo Invernal

 

estás onde queres estar?

 

 

Havia tempo desde que meus olhos não contemplavam água de mar tão cristalina.
Como nunca antes, as algas marinhas e os minúsculos peixes brincalhões não causavam-me qualquer incômodo; as gordas cobras do mar dormiam como a maresia, enroladas em si mesmas, enquanto eu me banhava de sal e sol. Ainda que uma delas, não tão calma assim, me fez sair da água de sal para ir procurar sabe se lá o que, intuitivamente, nas águas doces do Porto.
A minha cidade-casa estava bela e velha e misteriosa como sempre, e cada riacho e buraco cheio d’água me fazia querer entrar e explorar, encontrar o que eu nem sabia que estava a procura. E todos os corregos e rios e fozes correram a tarde inteira, até que a lua cheia e o próprio Douro levaram-me àquela casa.
Era baixa e larga, vermelho-sangue, vinho-doce noviço, parecia ter olhos cheios de cílios amarelos como se o arquiteto tivesse criado um ritual de homenagem à um devaneio à la Lewis Carroll. Estava silenciosa e localizada redondamente em meio a um jardim na esquina de uma das velhas ruas tripeiras. E tinha nela qualquer coisa demasiado atraente para que eu a ignorasse; precisei portanto nela entrar.
Aquele jardim empoeirado detinha qualquer aurea mágica e pequeninas fotos desbotadas de entes de alguém, samambaias, plantas de todas as espécies, candeeiros de óleo apagados, anões de jardim e velas, velas, acessas e pingando em centenas. Havia um banco de madeira em que sentei-me, descalçando os pés dos mocassins verdes-musgo e entrei em minha própria mente por um momento ou dois, não sei ao certo quanto tempo se passou naquela atraente atmosfera nebulosa de jardim secreto.
Tudo era silêncio e vazio, e eu sentiria medo não fosse o meu coração extremamente em paz naquele lugar. De repente atinei para um fato: era provável que alguém morasse ali, de outra maneira não poderiam estar todas aquelas centenas de velas acessas cuidadosamente no Porto de vendaval.
E foi aí que ela apareceu, com os cabelos ondulados acastanhados, cortados na altura dos ombros, um cardigã creme e seus oitenta e poucos anos. Andava devagar e inspirava calmaria, sentou-se ao meu lado e falou-me de céu e terra, inferno e paraíso e os quatros elementos naturais, segurando sem preocupação uma das velas que pingava cera quente em seus dedos enrugados. E, estranhamente, aquilo também não me desesperava em nada; era tudo uma paz inexplicável que engolia tudo.
Estivemos eu a ouvir e ela a contar sua experiência vital que me era extramentemente enriquecedora, pelo que apenas estive atenta em meus ouvidos para absorver tudo que ela me ensinava, como uma vózinha amável de nome Isabel, por horas à fio, até que por toda a madrugada. E no primeiro despontar do crepúsculo, apercebi-me de uma luz sintética que não era como a calmaria das velas que ainda queimavam aos montes ao nosso redor, eram sim as lanternas de um carro vintage verde-musgo como os meus sapatos, que iluminavam diretamente no meu rosto, como acusações claras. E levantei-me de súbito e atravessei o jardim e o portão da propriedade, em direção ao carro parado e acusador.
- Olá? - dirigi-me ao homem por trás da vidraça. - Que fazes com essas luzes em tal altura da manhã que mal teve tempo de acordar?
- O que fazes tu? - o homem retrucou. - Essa é a minha casa. Porque você esteve aí dentro por toda a noite? - ele continuou, a tez enrugando sobre os óculos de grau: - te vejo aí, sentada falando sozinha por entre as plantas por horas e horas, e penso que és insana ou coisa do tipo, então esperei para ver qual seria o resultado da tua doida aventura na propriedade que me pertence.
A resposta do homem me deixa alarmada.
- Não é sua nada! É a casa da senhora com quem estivesse a falar por toda a noite. Ela me contou sobre tudo e essa casa é dela. Veja! Lá está! - eu apontei para o banco em que antes me sentei com Isabel, e não havia ninguém, e nem sinal das luzes das velas que encheram o jardim momentos antes.
- Quem? Não há senhora alguma e nunca ouve. Andavas tu a falar só e com uma vela a pingar cera quente em tuas mãos. És nova e louca, vá embora e não retorne jamais a casa que não pertence a ti nem a mulher alguma.
Ele disse e entrou em casa, abrindo o portão com a chave que retirou do bolso. Guardou o carro na garagem e eu assisti tudo, estupefada.
Meus mocassins verdes.musgo apertavam meus pés cansados.
Eu tinha as roupas úmidas e percebi pingos secos de cera de vela grudados em minhas mãos.
Antes de ir embora, lancei um último olhar à janela da casa peculiar.
Isabel acenava para mim, sorrindo.
Pisquei; e já não havia ninguém lá.
Fui-me assim, as mãos queimadas e a mente em devaneio, e nunca retornei.